TEXTO I
FULANO DE TAL
O
anonimato é como fortaleza sitiada: quem
está nele quer dele sair, e quem está fora quer entrar nele. O lema de
quem está no anonimato é: que falem mal de mim, mas que falem. O lema de quem
perdeu o anonimato é: não se fala na mulher de César. Tal atitude ambivalente
quanto ao anonimato é coisa recente. Épocas anteriores assumiam posições mais
decididas. Em tempos arcaicos, ter nome conhecido significava estar exposto a
poderes nefastos. O conhecimento do nome conferia ao inimigo armas destrutivas,
já que a força vital ( mana) está escondida no nome. Por isso os nomes eram guardados
em segredo, e por isso o nome de Deus é impronunciável. Na Antigüidade, ter
nome significava não tanto ser
falado, mas ser cantado. E já que os poetas que cantam os nomes não passam de
bocas das Musas, ter nome significava quase ser divinizado. Na Idade Média, ser
anônimo significava poder humildemente agir para a maior glória de Deus, e ter
nome significava, portanto, cair na tentação do pecado mortal do orgulho. Na
Idade Moderna, fazer nome significava permanecer na memória coletiva (portanto,
entrar em Museu, imaginário ou não), e ter nome significava alcançar a
imortalidade (por exemplo: a das academias). Atualmente ter nome é problema.
Algumas
razões da problematicidade da fama são estas: é muito fácil penetrar na memória
coletiva, dada a comunicação de massa. Basta participar de programa
televisionado do tipo Chacrinha1. É igualmente fácil ser esquecido.
Basta mudar o programa. A memória da massa é muito fugaz, e pode sê-lo. Pode
sê-lo porque existem memórias infalíveis: os cartões perfurados2 dos
computadores. O problema é pois este: onde quero ter nome, na massa ou no
cartão perfurado? Se na massa, ficarei esquecido. Se no cartão, serei
desumanizado. Chato isto.
Ainda
existem academias, museus, anais de sociedades elegantes, enciclopédias e nomes
de ruas. Posso querer fazer nome em tais memórias arcaicas, chamadas “da
elite”. Não serei nem esquecido, nem lembrado, mas embalsamado. A imortalidade
das múmias ainda é possível. Não parece valer a pena. Só satisfaz à vaidade.
Portanto, morreu a fama.
Igualmente
morreu o anonimato. Na Idade Moderna,
ser igual a outros significava querer ser melhor que o vizinho. Competição no
anonimato em busca de nome. Atualmente, ser igual aos outros significa não
querer distinguir-se do vizinho. Mas como todos querem ser excêntricos,
significa querer ser excêntrico para não distinguir-se. Eis a solução do
problema: fazer do nome "Fulano de Tal" nome famoso. Em suma: no
futuro próximo todos serão famosos. Democracia? Não, fascismo.
(FLUSSER, Vilém. Ficções
filosóficas. São Paulo: EdUSP, 1998.)
1Chacrinha -
apresentador de televisão dos anos 60
2cartões perfurados -
equivalentes aos disquetes dos
atuais computadores
Questão 01
O
filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser aborda o problema da fama
historicamente, observando como ele se teria manifestado em tempos arcaicos, na Antiguidade, na Idade Média, na Idade Moderna e na contemporaneidade.
Explique
a diferença entre os tempos arcaicos e a contemporaneidade, quanto ao desejo de
obter alguma fama.